DIA DE COSME E DAMIÃO: CONHEÇA A ORIGEM DA DATA
Você costuma participar das comemorações de Cosme e Damião todos os anos? Talvez até já tenha guardado saquinhos com doces ou visto celebrações em seu bairro, mas você conhece o significado dessa tradição?
Popularmente celebrado em 27 de setembro — embora marcado no dia 26 de setembro no calendário da Igreja Católica — o Dia de Cosme e Damião transcende a distribuição de bolos, balas, pirulitos e outras guloseimas, sendo uma data repleta de simbolismo. A comemoração é significativa não apenas para os católicos, mas também para os adeptos das religiões de matriz afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda.
Para as tradições mencionadas, Cosme e Damião são sincretizados com os Orixás Ibejis, representações da dualidade e da pureza das crianças. A celebração dessa data reforça a importância de cuidar e proteger os pequenos, tanto física quanto espiritualmente, com rituais que honram os princípios de alegria, união e equilíbrio.
Sidnei Nogueira, babalorixá, escritor, mestre, doutor, palestrante e sacerdote na Comunidade da Compreensão e da Restauração Ilè Asè Sàngó, conta à CNN que Cosme e Damião foram irmãos gêmeos que ficaram famosos por serem “médicos” que não cobravam pelos seus serviços de atendimento e de cura aos doentes.
No século IV, durante as perseguições aos cristãos sob o governo do imperador Diocleciano, os irmãos foram presos e acusados de praticar feitiçaria. No ano de 303, foram executados. Nos tempos atuais, são considerados padroeiros dos médicos, dos farmacêuticos e das faculdades de medicina.
“Foram presos, torturados e martirizados por serem cristãos. O culto a eles se espalhou com destaque para as ações do Papa Félix IV e de Justiniano I. Olhando para o Brasil, um país extremamente devocional, de muita fé e naturalmente espiritualizado, esses santos estão intimamente associados às crianças”, explica Nogueira. “Quanto ao Candomblé, nós celebramos a infância, celebramos as crianças, celebramos a alegria. Inclusive, nós também [povos de terreiros] temos divindades que são dois irmãos gêmeos, os Ibejis: Taiwo e Kehinde.”
“São orixás poderosos da cultura Yorubá que podem curar, proteger as crianças e evitar a morte prematura, ao enganar a própria morte”, continua. “Sua origem é na cidade de Igbo-Ora, na Nigéria, considerada a capital mundial dos gêmeos. Estima-se que ela tenha cerca de 158 pares de gêmeos para cada mil nascidos vivos.”
Nos terreiros de Umbanda e Candomblé, a festa de Cosme e Damião é um dos eventos mais esperados do calendário religioso. Durante as festividades, é comum a realização de rituais com cânticos, danças e oferendas para celebrar tanto os santos cristãos quanto os orixás africanos. Ambas as tradições, inclusive, valorizam a proteção das crianças.
“Acredita-se que celebrando e agradando as crianças, oferecendo doces a elas, todos nós receberemos alegria, prosperidade, saúde e vida longa”, pontua Nogueira.
Um pouco mais sobre o sincretismo
O professor defende que o sincretismo religioso, aspecto marcante da cultura religiosa no Brasil, foi uma tática de sobrevivência utilizada pelos escravizados no país. Proibidos de praticar suas crenças e fé de forma aberta e livre, muitos disfarçaram suas divindades sob a imagem dos santos católicos.
O marco, desta maneira, permitiu que as religiões advindas da África sobrevivessem à repressão e também criou novas formas de espiritualidade, capazes de acolher diferentes visões do divino. A festa de Cosme e Damião na Umbanda e no Candomblé é um dos exemplos mais vivos desse encontro, onde o passado colonial e a resistência cultural se transformaram em um novo legado espiritual.
“Não nos esquecemos que foram 5 milhões de pretos e pretas escravizados no Brasil. Portanto, foi uma estratégia de manutenção de uma África ancestral, uma África Bantu, Yorubá, das diferentes nações de Candomblé, Keto, Jeje, Angola, Nagô, porque os senhores de engenho torturavam qualquer escravizado que não seguisse a fé católica”, explica Nogueira.
“Portanto, havia essa associação direta; ao olhar para a estátua de Cosme e Damião, os escravizados cantavam e rezavam, em suas respectivas línguas, para Ibeji. Desta forma, os escravagistas olhavam e acreditavam que estariam adorando os deuses católicos”, conclui.
Sidnei Nogueira acrescenta que, atualmente, não enxerga mais o sincretismo como uma necessidade, mas valoriza o poder do vínculo que segue estabelecido até os tempos atuais. “Historicamente, a associação está feita e não quer dizer que ambos tenham a mesma origem e significado, mas sempre há elementos que os conectam, como Santa Bárbara à Yansã, Ibejis a Cosme Damião, Ogum a São Jorge (em algumas regiões do Brasil) e São Lázaro a Obaluaê“, explica.
“A associação está feita, e de verdade, não é uma associação que eu, particularmente, considere nociva. Eu gosto mais de uma leitura de que os Orixás negros enegreceram os santos católicos brancos, do que o contrário. Nós estamos no campo da devoção e este campo é naturalmente subjetivo e plural”, continua. “Inclusive, devido à essa relação, foi o que possibilitou que as crianças de diferentes religiões fossem aos terreiros pegar os doces e os presentes da festa de Cosme e Damião.”
“Nós celebramos Ibejis, mas até hoje nós falamos que é a festa de Cosme e Damião. Por quê? Porque nós celebramos Cosme e Damião e Ibejis ao mesmo tempo”, finaliza.
O babalorixá Sidnei Nogueira explica que o itã, ou conto em Yorubá, mais conhecido dos Ibejis, é o que os irmãos enganam a própria morte, justamente para destacar a importância do duplo, dos gêmeos.
“Conta-se que a Morte se ofendeu porque deixaram de lhe fazer oferendas”, explica. “E, ofendida, ela começa a matar todo mundo. Os gêmeos eram crianças e, portanto, precisavam de outras crianças para brincar, para se divertir. Com as mortes, chegou um dia em que não haviam mais crianças. A Morte punia a humanidade pela falta de respeito e oferendas, impedindo também que novas vidas viessem ao mundo.”
Os Ibejis gêmeos decidiram que iriam resolver essa situação. “Apesar de ninguém acreditar neles, nem mesmo os Orixás, os gêmeos afirmaram que fariam uma oferenda a Iku, a Morte na tradição Yorubá”, continua. “Assim, um dos irmãos foi até a Morte, enquanto o outro ficou escondido, combinando um revezamento. Ao chegar, o gêmeo se apressou em dizer que estava ali para fazer uma oferenda. Para sua surpresa, a Morte, que inicialmente queria matá-lo, se encantou quando ele começou a tocar um tambor e ela própria começou a dançar.”
“Durante mais de dez horas, o primeiro irmão tocou incessantemente. Quando ele se cansou, o outro irmão assumiu o lugar e continuou a tocar, sempre que a Morte se distraía com a música. Ela, encantada pela vitalidade e ritmo, dançava feliz, sem perceber que os irmãos estavam se revezando. Com o passar das semanas, a Morte ficou exausta, mas continuou dançando”, continua.
“Em um momento de cansaço extremo, um dos irmãos declarou que só pararia de tocar se ela parasse de matar. A Morte, então, concordou, mas pediu que ao menos uma vez por mês ele voltasse para tocar, para que ela pudesse se divertir e dançar, aliviando a pesada tarefa de levar vidas. Assim, compreendemos que a infância e as crianças possuem um poder imenso, capaz até mesmo de enganar a Morte. Essa história ilustra a força e a importância dos Ibejis, os orixás gêmeos, na tradição”, finaliza a explicação.
É comum encontrar algumas representações de Cosme e Damião acompanhadas por uma terceira criança menor, que seria Doum.
Diversas lendas explicam a origem dessa figura. Uma delas relata que Cosme, Damião e Doum eram trigêmeos e, após a morte de Doum, os irmãos seguiram a carreira de médicos, dedicando-se a cuidar das crianças de forma gratuita. Doum é reverenciado como o protetor das crianças até os sete anos de idade.
O babalorixá esclarece que, para os candomblecistas, a principal oferenda de agradecimento aos Orixás Ibejis seria a nossa alegria e doçura.
“Nós acreditamos que quando você oferece alguma coisa para Ibejis, você também está agradando Cosme e Damião. Esse hibridismo não é um problema, até porque nós estamos no campo da devoção, não é mesmo? Então, como crianças, tanto Cosme Damião quanto Ibeji recebem doces diversos, como maria mole, pé de moleque, guaraná, salada de frutas, etc”, conta.
Mas quanto ao Caruru? Aos devotos, trata-se de prato tradicional da culinária afro-brasileira, que tem um papel central nas celebrações de Cosme e Damião na Umbanda e no Candomblé.
Inclusive, a iguaria foi reconhecida como patrimônio imaterial do estado da Bahia. A resolução ocorreu no dia 19 de setembro, em sessão plenária presidida pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC).
O título foi aprovado por unanimidade e o registro deverá ser publicado no Diário Oficial do Estado, em 27 de setembro.
“Nós no Candomblé chamamos de Caruru de Ibejis o guisado feito de quiabos. Além disso, também faz-se vatapá, arroz de leite, pipoca e acarajé, justamente pela relação muito forte com Yansã. Todos estes pratos também são oferecidos aos Erês, que são os iniciados no estado de crianças no Candomblé e os espíritos encantados de crianças na Umbanda”, complementa.
Apesar da herança cultural e espiritual presente nestas celebrações, as comemorações enfrentam o racismo religioso no Brasil. Esse preconceito se manifesta na forma de discriminação, intolerância e violência contra praticantes dessas tradições. Em apenas sete meses, o Disque 100, serviço do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, registrou 1.451 denúncias de violação da liberdade de crença ou religião neste ano. Esse número é quase o dobro do registrado no mesmo período do ano passado, quando foram feitas 789 denúncias desse tipo.
“É uma pena que atualmente a intolerância religiosa tem satanizado tanto os santos católicos quanto os Orixás. [Antigamente], uma coisa que sempre foi tão natural, toda criança, sendo, ela católica ou evangélica, não importava religião, ia até o terreiro pegar seu saquinho de doces, pegar seus brinquedos”, fala Nogueira. “E hoje, lamentavelmente, por conta do fundamentalismo, as crianças têm sido proibidas de irem aos terreiros buscar seus doces e balas. Nós, de terreiro, incorporamos, inclusive, livros infantis para dar para as crianças nessa época de festejo aos Ibejis e a Cosme Damião, mas, infelizmente, a intolerância religiosa tem produzido muita segregação, muito ódio, a ponto de nos impedir de agradar as crianças.”
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